JUSTIÇA OU PUNIÇÃO?
A Justiça é um bem humanitário maior, consubstanciada na idéia de dar a cada um o que é seu, segundo seu merecimento. Diante disso teríamos de concluir, necessariamente, que ela (A Justiça) deveria ser de igual qualidade, qualquer que fosse o sistema judiciário analisado. Não é isso, no entanto, o que ocorre.
Pela análise dos mecanismos de criação e aplicação dos sistemas judiciários, visando a manutenção da paz social via administração dos conflitos, pode-se observar que, no Brasil, ao invés da distribuição da Justiça, parece existir um certo sistema de punição aos pobres.
A administração dos conflitos deve ser entendida, aqui, como o conjunto de ações aplicadas à obtenção da normalidade dos inter-relacionamentos sociais, quando estes são abalados, quer pela conduta humana, quer por fatos naturais. Administrar conflitos sociais seria, portanto, manter a paz social, ou seja, manter a paz do povo.
Antes de concluirmos por aquela idéia do sistema de punição, tomamos a liberdade de fazer um breve paralelo entre a administração de conflitos no Brasil e em alguns países mais desenvolvidos. Para isso, entretanto, fez-se necessário, antes, sabermos como os membros daquelas nações se vêem ou se sentem em relação a alguns conceitos tais como, povo, status, estratificação social, Estado, cultura nacional, etc., e as diferenças desses conceitos entre nós.
Enquanto que nos países mais desenvolvidos esses conceitos são mais genuinamente sociais (ou seja, se aproximam mais daqueles conceitos definidos pela sociologia), no Brasil há uma percepção coletiva de significados menos nobres a essas expressões. Enquanto lá o “povo” é o conjunto de cidadãos que integram a Nação, aqui o “povo” se apresenta como aquela massa anônima, um amontoado de “ninguéns” pendurados nos morros e nos coletivos de péssima reputação; enquanto lá “status” é a situação momentânea do cidadão, aqui “status” é ter dinheiro, poder e prestígio, ou seja, é ser da elite e, portanto, ser diferente do povo; enquanto lá “cultura” é a soma do comportamento humano coletivo, num determinado lugar e tempo, levando em conta seus hábitos e costumes, tais como a música e a dança, a culinária, o vestuário, a língua, etc., aqui “cultura” é a quantidade (e não necessariamente a qualidade) de conhecimentos que um indivíduo aparenta possuir, ou seja, só são cultos entre nós os “doutores”, ou como se dizia antes, os letrados; enquanto lá o “Estado” é uma entidade encarregada da manutenção dos serviços públicos essenciais para todos, aqui o “Estado” é uma entidade paternalista, onde o poder e o prestígio fazem com que haja, muitas vezes, um convencional protecionismo e favorecimento dos vencedores de pleitos eleitorais, em prejuízo dos grupos menos favorecidos nas eleições imediatamente ocorridas.
Desses fatos advêm, certamente, as diferenças que se pode observar em termos de organização do Poder Judiciário, como instrumento de administração de conflitos. E não poderia ser diferente. Afinal, o Poder Judiciário é criação do poder político. E como tal, reflete, necessariamente, os valores do meio do qual emergiu. Daí que, enquanto lá se observa um Poder Judiciário mais ágil e igualitário (do ponto de vista do tratamento dispensado às partes), aqui se observa, não raro, a coexistência de vários institutos jurídicos que, cada qual a seu modo, refletem a desigualdade social reinante, quando tratam, diferentemente, os destinatários da norma jurídica. Isso explica, de certa forma, a complexidade de nossos códigos processuais, fazendo com que o direito adjetivo (ou instrumental ou processual) brasileiro se sobreponha ao direito objetivo (material), a ponto de justificar a frase anônima de que “no Brasil, ou se faz Justiça ou se aplica a Lei.”
Iguais sinais dessa desigualdade são os processos diferentes para apuração de certos fatos, como por exemplo, no processo para apuração dos crimes cometidos por servidor público; dos crimes de colarinho branco; dos crimes de responsabilidade política de Prefeitos e Vereadores; dos crimes praticados no exercício do cargo por agentes políticos e membros do Poder Judiciário; etc.
Muda-se aqui, até mesmo, o direito material, quando exclui uns e outros da codificação penal geral para inseri-los em legislação penal especial onde, não raro, as penas são mais brandas e o processo mais complexo, como forma de dificultar o julgamento; ou quando se proíbe o usucapião de terras públicas. Tem-se, mesmo, entre nós, se chegado ao extremo de se criar tribunais privilegiados, celas especiais e até mesmo, Juizados Especiais. Nos tribunais privilegiados é possível discutir e decidir, sigilosamente, os conflitos de interesses do supra sumo da “elite”; nos Tribunais Especiais (antes denominados “De Pequenas Causas”, como se houvesse uma Grande, Média e Pequena Justiça), são discutidas e decididas causas do “povo”, como se fosse uma justiça de segunda categoria para um cidadão de igual irrelevância.
Assim, para se iniciar um debate, diríamos que, sob os aspectos acima destacados, se afigura, às vezes, observando nosso Judiciário e o Judiciário de países mais justos e igualitários, uma certa distorção: lá a sociedade (o povo) se pune, se corrige; aqui, a sociedade (a elite social) pune o povo (e não se corrige).
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Gilmar da Cruz e Sousa, advogado militante em Juina
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